Processos de exclusão social e iniquidades em saúde: um estudo de caso a partir do Programa Bolsa Família, Brasil (Hayda Alves1 e Sarah Escorel 2)
A abordagem da determinação social do processo saúde-doença envolve desvelar como a estrutura socioeconômica incide na produção de saúde e também analisar a interferência das diferentes políticas de proteção social no enfrentamento desse processo (1). Entender a saúde no sentido amplo e como recurso para a vida digna tem sido um dos fundamentos da Organização Mundial de Saúde (OMS) desde a sua criação. No Brasil, a 8a Conferência Nacional da Saúde, de 1986, estabeleceu uma definição ampliada de saúde, que foi incorporada nas bases legais do Sistema Único de Saúde (SUS).
A saúde como campo intersetorial requer a interação entre diferentes políticas públicas para gerar uma gama de efeitos capazes de transformar as expressões da questão social contemporânea, como os processos de exclusão social produtores de iniquidades em saúde (2). Essas iniquidades podem ser alteradas por intervenções vinculadas a políticas universalizantes (3) orientadas ao enfrentamento dos determinantes sociais que resultam em desigualdades em saúde desnecessárias, evitáveis e injustas (4).
A despeito da importância das políticas universalizantes para a proteção social e o combate às iniquidades, verifica-se, a partir de 1990, na América Latina, a expansão de políticas focalizadas, resultantes da enunciação da questão social como pobreza, por influência do receituário neoliberal imposto por agências internacionais, condicionante da renegociação da dívida externa (5).
No marco dessas intervenções, foram desenvolvidos, no continente latino-americano, programas de transferência de renda condicionada, como o Programa Bolsa Família (PBF), no Brasil. Criado em 2003, o PBF é o maior programa latino-americano de transferência de renda condicionada. Em 2013, beneficiou mais de 13,7 milhões de famílias com renda mensal per capita até RS 140,00 reais (US$ 70,00), com os objetivos de: promover o acesso à rede de serviços públicos, em especial saúde e educação; estimular a emancipação sustentada das famílias; e promover a intersetorialidade das ações sociais do poder público.
A inscrição no PBF ocorre mediante o registro das famílias no Cadastro Único para Programas Sociais do Governo Federal (Cadúnico), operacionalizado pelos municípios e processado no âmbito federal (6, 7). As famílias com rendimento mensal entre R$ 70,00 e R$ 140,00 per capita e com crianças ou adolescentes de até 17 anos, dependendo do número e da idade dos filhos, podem receber entre R$ 32,00 e R$ 236,00 (aproximadamente US$ 16 e US$ 118). As famílias com renda mensal per capita de até R$ 70,00 recebem o benefício básico de R$ 70,00, além dos repasses variáveis vinculados ao número e idade dos seus integrantes, totalizando entre R$ 70,00 e R$ 306,00 (aproximadamente US$ 35 e US$ 153) (6).
A manutenção do benefício está condicionada ao cumprimento de contrapartidas: vacinação atualizada das crianças; acompanhamento do crescimento e desenvolvimento dos menores de 7 anos; acompanhamento das mulheres entre 14 e 44 anos e de gestantes e nutrizes. Crianças e adolescentes entre 6 e 17 anos devem apresentar frequência escolar mensal mínima. Menores de 15 anos em situação de risco ou retirados do trabalho infantil devem frequentar serviços socioeducativos (6). A concessão dos benefícios tem caráter temporário, segundo o limite da renda familiar per capita e a idade dos dependentes, e não gera direito adquirido, sendo a elegibilidade das famílias obrigatoriamente revista a cada 2 anos (7).
As condicionalidades do PBF vinculadas ao setor saúde são operacionalizadas nos serviços de atenção primária, oferecida por meio da Estratégia Saúde da Família (ESF), a qual constitui o eixo estruturante da oferta de serviços no SUS (8). Em 2013, a ESF alcançou 95% dos municípios e cobriu 54% da população (9). Portanto, objetiva-se associar a ESF e o PBF para a reversão de processos de
exclusão social vividos por famílias em situação de pobreza e para o enfrentamento de iniquidades em saúde.
Este artigo apresenta os resultados de um estudo de caso que utiliza a abordagem dos processos de inclusão e exclusão social em suas múltiplas dimensões (social, econômica, cultural e política)
para examinar as transformações operadas pelo PBF na realidade social das famílias assistidas e suas repercussões nos determinantes sociais da saúde produtores de iniquidades.
MATERIAIS E MÉTODOS
Esta pesquisa de abordagem qualitativa utilizou o método de estudo de caso (10) e as técnicas de observação participante, pesquisa documental, análise de dados secundários e entrevistas semiestruturadas com famílias beneficiárias e ex-beneficiárias do PBF, além de gestores
municipais. O estudo de caso foi conducido de setembro de 2011 a junho de 2012, em Silva Jardim, no estado do Rio de Janeiro (RJ). O município tem 21 mil habitantes e foi escolhido por apresentar
o pior índice de exclusão social (IES) (11) entre as localidades com 100% de cobertura da ESF no estado.
O IES é constituído por três dimensões, subdivididas em componentes: i) vida digna: composta
pelos índices de pobreza (17%), emprego (17%) e desigualdade (17%); ii) conhecimento:
alfabetização (5,7%) e escolaridade (11,3%); iii) vulnerabilidade juvenil: presença juvenil (17%) e violencia (15%) (11). Esse indicador varia de zero (pior situação possível) a 1. Em 2004, o
IES de Silva Jardim era de 0,44. O cenário de pesquisa também foi estudado a partir das informações contidas no Relatório Analítico do Sistema de Benefícios ao Cidadão (SIBEC). Foi realizada análise descritiva das informações disponíveis sobre os beneficiários do PBF de Silva Jardim em dezembro
de 2011 (sexo, idade, valores e tipos de benefícios, tempo de recebimento e situação de domicílio), utilizando o software Epi Info 2008 versão 3.5.1. Essa análise, somada aos dados demográficos
e sociais do município disponíveis no Instituto Brasileiro de Geografía e Estatística (IBGE), possibilitou ampliar a compreensão do campo de investigação.
O PBF foi implantado em Silva Jardim em 2003 e expandido em 2008. Em dezembro
de 2011, existiam 2 322 titularesdo PBF e 3 658 dependentes (1,6 dependente por titular). Foram selecionadas para o estudo duas áreas rurais (totalizando 2 316 habitantes e 690 famílias,
sendo 270 beneficiárias do PBF) e duas urbanas (totalizando 5 407 habitantes e 1 545 famílias, sendo 801 beneficiárias) que apresentavam os piores indicadores de vulnerabilidade social (maior percentual de menores de 15 anos não alfabetizados e maior percentual de domicílios
sem abastecimento de água e esgotamento sanitário via rede geral) segundo os dados do Sistema de Informação da Atenção Básica do Ministério da Saúde (Siab/MS). Com a mediação dos
agentes comunitários de saúde, foram localizadas e entrevistadas 31 famílias em suas residências. Os interlocutores foram os titulares e ex-titulares dos benefícios, em famílias ligadas ao PBF por
no mínimo 1 ano.
As entrevistas foram realizadas por uma das autoras (HA) mediante o consentimento informado
dos entrevistados, gravadas em áudio e posteriormente transcritas para análise. A fase das entrevistas com as famílias foi encerrada por “saturação teórica”, ou seja, quando os casos adicionais não
produziram novas informações (12).As informações obtidas nas entrevistas foram sistematizadas nas dimensões social, política, cultural e económica dos processos de exclusão e incluso social. Também foram sistematizadas conforme as intersecções com os determinantes sociais geradores de iniquidades em saúde (13). Essas dimensões (13, 14) também orientaram a análise das
repercussões do PBF no cotidiano dos entrevistados (tabela 1). Os depoimentos dos entrevistados foram interpretados como unidades de significação e sentido (15), posibilitando a construção de categorias empíricas agrupadas segundo as dimensões dos processos de exclusão e inclusão social
(13, 14).
Essa forma de examinar os acontecimentos investiga, em cada dimensão, a formação, fragilização ou ruptura de vínculos sociais e suas consequências no cotidiano e nas trajetórias de vida (13,14), constituindo, ao mesmo tempo, um referencial teórico e uma metodologia de interpretação dos resultados. O projeto foi aprovado pelo Comitê de Ética em Pesquisa da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca da Fundação Oswaldo Cruz.
RESULTADOS
Os dados do SIBEC acerca dos beneficiários do PBF em Silva Jardim indicaram que a titularidade era majoritariamente feminina, não sendo verificadas diferenças entre os sexos na proporção de titulares que recebiam o benefício básico de R$ 70,00 (87%). Entre os titulares homens, 45% ganhavam menos
de R$ 100,00, o que ocorria com 26% das mulheres. Valores mais elevados eram recebidos por 50% das famílias de titularidade feminina e 26% de titularidade masculina. Entre as famílias de zona rural, 17% recebiam o benefício há mais de 6 e até 8 anos, o que ocorria com 10% das residentes em zona urbana. As
principais características dos titulares do PBF no município e dos entrevistados encontram-se nas tabelas 2 e 3, respectivamente.
Repercussões do PBF nas dimensões dos processos de inclusão e exclusão social: análise das entrevistas
As repercussões do PBF segundo as dimensões dos processos de exclusão e inclusão social estão resumidas na tabela 4. As famílias entrevistadas caracterizavam- se por diversas vulnerabilidades
nos âmbitos do trabalho e da educação, algumas intensas. Relatavam processos de fragilização dos vínculos,
porém nenhum depoimento indicou, nem tampouco foi observada, desvinculação completa em qualquer dimensão que marcasse a existência de um estado de exclusão social. Observaram-se repercussões
do PBF na diminuição de vulnerabilidades em todas as dimensões analisadas (tabela 4), em particular na
econômica e na social.
Entre os principais resultados, destacam- se os efeitos imediatos do PBF relacionados à transferência direta de renda, em particular no aumento do consumo. As narrativas evidenciaram diferentes sentidos adquiridos pelo PBF no enfrentamento de vulnerabilidades econômicas e como apoio à renda de famílias com
inserções ocupacionais precárias. O benefício era associado ao “dinheirinho certo” complementar ao trabalho — um trabalho que gerava renda insuficiente para suprir as necessidades básicas das
famílias, além de frequentemente ser informal, desprotegido e transitório.
“Eu vejo assim, eu trabalho e eu preciso, imagina quem não trabalha! [. . .] O trabalho que a gente tem não supre tudo. E essa é uma rendazinha que entra para ajudar [. . .] porque às vezes meu pagamento não cai em tal dia e recebo o Bolsa Família em uma certa data, daí eu já não espero para receber eu vou
lá e já cubro [a dívida] com o Bolsa Família.” (Entrevista 5)
“É que aqui também tem outra dificuldade, encontrar serviço. Com esse dinheirinho, eu pago uma prestação, é um negócio de colégio [. . .] Então se naquele mês me faltar, já fica eu devendo lá, entendeu? Essas coisas assim de casa tudo sou eu que compro, entendeu? O meu marido mesmo, é só para [o de] comer e o remédio assim, rapidamente acaba.” (Entrevista 20)
Não foram relatados efeitos do PBF relacionados aos programas complementares de inclusão produtiva, considerados como “portas de saída” por meio de capacitação profissional ou ampliação da escolaridade das famílias beneficiárias, porque não haviam sido criados ou não estiveram ao alcance dos
entrevistados.
Na dimensão social, o PBF atuava promovendo inclusão ao ampliar a participação das famílias na rede de comércio local, possibilitar a aquisição de itens alimentares e de vestuário, material escolar, entre outros, além de viabilizar a compra a crédito de bens duráveis. Dessa forma, fortalecia os laços sociais
pela esfera do consumo, de modo a satisfazer algumas necessidades materiais e simbólicas das famílias. Essas necessidades referiam-se à autovalorização do beneficiário como consumidor, como portador de cartão bancário e/ou como alguém que conseguia pagar suas contas em dia — símbolos de autonomia e
respeito. Tais repercussões alçavam as mulheres ao papel de protagonistas da própria vida e de suas próprias decisões, e exemplificam como o PBF promove inclusão na dimensão cultural, ao produzir
mudanças positivas no status de seus beneficiários.
O dinheiro do Bolsa Família já ajuda na renda [. . .] Minha filha hoje pode andar arrumadinha, ter um saltinho e tudo! Não se sente abaixo das coleguinhas. (Entrevista 23)
Ainda que, para 88% das famílias vinculadas ao programa, o recurso do PBF fosse limitado a menos de um quarto do salário mínimo brasileiro (igual a R$ 622,00 em dezembro de 2011) (tabela 2), ele possibilitava a equalização de oportunidades de participação na vida social e favorecia o desenvolvimento de
funcionamentos (16) valorizados pelas famílias pobres. Apesar da importância desses achados, é necessário considerar que os mesmos podem ter sido maximizados nos relatos em função da homogênea
precariedade vivida pelo grupo entrevistado, limitante das opções de vida e de projetos de futuro.
Vale destacar que, nas famílias entrevistadas, havia uma expectativa de mobilidade social implícita na expressão “ser alguém na vida”, manifesta no desejo de ver os filhos atingirem um grau de instrução educacional mais elevado para conquistar um bom emprego e melhores condições de vida. Os
entrevistados afirmavam que a renda do programa, conjugada ao acesso à educação, poderia transformar as trajetórias geracionais de exclusão social. Meu pai morava em fazenda, entendeu? Trabalhava de enxada. Aquilo não dava para comida das crianças, daí a gente mudava. [. . .]
A gente passou uma vida de muita pobreza, muita fome. Agora hoje em dia meus filhos já não têm mais essa pobreza toda, entendeu? [. . .] Na minha época o pai falava: hoje não vai para a escola não porque hoje nós temos que ir pra roça, tem que capinar por que senão vocês vão ficar sem comida. [. . .] eu só tive a quarta série, entendeu? Então eu falo pra elas, se eu tivesse o que vocês têm hoje que pode estudar, tem a ajuda do governo que dá pra vocês estudar, eu hoje era alguém na vida! (Entrevista 23)
Por outro lado, problemas ligados à frequência escolar das crianças e jovens, cujo controle de condicionalidades era considerado mais efetivo que o da saúde, acarretavam temores acerca
da suspensão ou cancelamento do benefício. Os entrevistados consideraram ainda ser injusto quando o benefício era integralmente cancelado pelo des-cumprimento das condicionalidades da
educação por parte dos jovens, cujo controle pelos pais era mais difícil. Esse tipo de situação fragilizava os vínculos familiares e comunitários, na medida em que o jovem era responsabilizado pelo aprofundamento da pobreza da família.
Na dimensão política, os efeitos do PBF foram limitados por fragilidades no funcionamento das instâncias de participação social do programa. Os depoimentos não evidenciaram qualquer incidência do programa na promoção da cidadania ativa nem na expressão das demandas e interesses dos beneficiários na esfera pública. Nessa dimensão, as repercussões do PBF relatadas concentraram-se na ampliação do acesso
e utilização tanto dos serviços de saúde quanto educacionais. As condicionalidades de saúde são
cumpridas por meio dos serviços de atenção básica, que, no cenário de estudo, estavam assegurados a toda a população desde 2002 via ESF, dificultando isolar os efeitos do PBF das estratégias setoriais específicas.
A ESF promovia inclusão social por favorecer o acesso aos serviços de atenção básica e oferecer
uma assistência territorializada às famílias. Porque antigamente era difícil você ter acesso
[. . .] Hoje você pode fazer um exame, você pode ser atendida por um médico, enfermeira,dentista, tudo isso a gente tem ali que é útil para a gente aqui. (Entrevista 7)
O Posto de Saúde é praticamente o único recurso que nós temos aqui no bairro. Tem
a maior serventia pra nós daqui. (Entrevista 20)
Os entrevistados valorizaram a mediação realizada pelos agentes comunitários de saúde no encaminhamento das suas demandas às equipes, as visitas domiciliares e as ações desenvolvidas para garantir a continuidade do cuidado.
Eles lá me dão muita atenção. Minha mãe tava ruim com pressão baixa. Aí ela [a agente comunitária de saúde] foi, me pegou e me levou lá para medir pressão. Veio aqui em casa avisar também sobre o teste para ver se tava com glicose alta. Vem ver se tá com diarreia. (Entrevista 18)
Esses trabalhadores também exerciam um papel mediador entre o público-alvo e os gestores locais do programa, viabilizando a comunicação e favorecendo a permanência de beneficiários no PBF
através do cumprimento de condicionalidades da saúde. Eles [os agentes comunitários de saúde] te
chamam para fazer pesagem [. . .] E sempre quando eles tão sabendo que tem cadastro,
alguma coisa assim [. . .] eles vêm na porta da gente avisar, a gente nunca fica sem saber
não. (Entrevista 2)
Os entrevistados destacaram também os esforços realizados pela equipe de Saúde da Família para garantir transporte, medicação e assistência nos serviços de média e alta complexidade, apesar dos relatos indicando grandes dificuldades na coordenação de cuidados e na ampliação do acesso à rede regionalizada de atenção secundária, especialmente pediátrica e obstétrica, que não sofria interferência do PBF, exceto se os recursos do benefício fossem utilizados pelas famílias para comprar serviços no subsetor privado. Além disso, os usuários queixavam-se do não atendimento de urgências nas Unidades de Saúde da Família e de problemas
ligados à falta de médicos nas equipes, que ocorria por dificuldades de fixação do profissional em tempo integral numa localidade de baixo desenvolvimento econômico. Tais problemas também reforçavam
as críticas orientadas à função de filtro (gatekeeper) desempenhada pelos médicos da ESF para a atenção
especializada.
DISCUSSÃO
A pesquisa identificou que o trabalho seguro e protegido figura como principal polo de inclusão social reconhecido e almejado pelas famílias — contudo, as dificuldades de inclusão produtiva aliadas às vulnerabilidades na esfera do trabalho não são alteradas pelo PBF. O PBF não reproduz nem é um substituto dos suportes e vínculos gerados nessa dimensão. As famílias beneficiárias continuam
em busca da inserção ocupacional, das garantias de proteção social e dos valores simbólicos positivos ligados à definição de trabalhadores. No território pesquisado, tal status parece ser uma realidade cada vez mais distante, limitando a identidade dessas famílias à de “pobres de assistência” (17) e fragilizando
sua capacidade associativa em torno do trabalho (18), um reconhecido elemento de sociabilidade e de proteção social.
Esse enquadramento identitário reforça a desconfiança de outros segmentos sociais de que o beneficiário do PBF é — por opção — um não trabalhador dependente da assistência pública (19), a despeito de análises que demonstram aumento da taxa de participação no mercado de trabalho desses indivíduos (20). Assim, há que se reconhecer que os vínculos empregatícios e as condições de trabalho das famílias pobres são os
elementos que impõem obstáculos ao exercício dos direitos humanos e limitam o usufruto das liberdades substantivas, por restringirem o leque de escolhas, as capacidades e as oportunidades dos indivíduos de se realizarem plenamente no mundo a partir daquilo que consideram valioso ser, ter ou fazer (16, 21).
Tal cenário afeta a saúde em diferentes perspectivas (econômica, familiar, sicossocial, etc.), gerando iniquidades (22) que ultrapassam as possibilidades de equacionamento pelo setor saúde, requerendo políticas econômicas e de seguridade social capazes de atuar no mundo do trabalho. Os achados da pesquisa corroboram análises de que o PBF favorece a igualdade de gênero (23), as relações de consumo (23, 24) e a criação de novos circuitos comerciais e dinâmicas sociais comunitárias (18). Por essa via, o
programa atua nas dimensões social e cultural, na medida em que equaliza as relações de poder entre os sexos e possibilita minimizar sentimentos de inferioridade dos integrantes dessas famílias em função de sua posição na estrutura social. Esse aspecto, ainda que de forma indireta e limitada, interfere positivamente
nas condições de saúde e sensação de bem-estar.
Entretanto, a política social economicamente orientada que promove a inclusão das famílias no mercado de consumo, sendo, porém desarticulada de outras políticas de proteção social (25) universalizantes e de base constitucional, como seguridade social e educação, compromete, em longo prazo, as possibilidades
de o PBF incidir na superação da pobreza geracional e, por conseguinte, promover a inclusão social permanente dessas famílias na cidadania. Ressaltam-se os limites que o incentivo à frequência
escolar das crianças e adolescentes encontra na baixa qualidade da escola pública no Brasil.
Se os processos de exclusão social remetem à fragilização de vínculos e a uma gama de situações de não pertencimento social (14), o ingresso no PBF possibilita reverter parcialmente essa trajetória,
diminuindo as vulnerabilidades e fortalecendo os laços característicos da inclusão social. Nesse sentido, o programa favorece alcançar um lugar social que as famílias desejam ocupar, no qual não se
sentem nem discriminadas, nem desqualificadas pela dependência dos serviços de assistência social (26), podendo até mesmo dispensar o benefício em prol de outros “mais necessitados” quando
melhora a sua situação ocupacional e de rendimentos (27).
No âmbito da saúde, embora estudos sobre o PBF indiquem efeitos positivos na promoção da equidade das famílias beneficiárias, como a diminuição da desnutrição infantil, o aumento de consultas pré-natais e a diminuição da mortalidade infantil (24, 28–31), torna-se necessário desenvolver pesquisas para
esclarecer até que ponto tais efeitos podem ser atribuídos ao PBF ou resultam da ESF, que por si só pode ser associada ao favorecimento de dinâmicas de inclusão social, especialmente entre os grupos
mais vulneráveis (32).
Por fim, vale ressaltar que o presente estudo apresenta as condições de vida e percepções de 31 famílias vinculadas ao PBF, não constituindo uma amostra representativa dos mais de 13 milhões de beneficiários do programa no Brasil.
A intenção da pesquisa não é extrapolar os achados para o conjunto dos beneficiários do programa em âmbito nacional, e sim, por meio da análise em profundidade dos elementos cotidianos comuns
na vida dessas famílias, compreender como o PBF interfere nos processos de exclusão e inclusão social e, sobretudo, nos determinantes sociais da saúde produtores de iniquidades. Os resultados de estudos de caso permitem ainda elaborar recomendações para políticas setoriais e intersetoriais a serem implementadas na localidade pesquisada, visando à inclusão produtiva das famílias e o fortalecimento de políticas de proteção social e de participação a partir da própria institucionalidade do programa (33). Embora não possibilitem
generalizações, oferecem pistas analíticas, novas perguntas e hipóteses para futuras investigações que, mesmo limitadas territorial e populacionalmente, podem aprofundar o conhecimento sobre as formas pelas quais programas de transferência de renda condicionada, como o PBF, interferem no cotidiano das famílias
beneficiárias e modificam (ou não) as desigualdades em saúde da população que vive em situação de pobreza e miséria
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